sábado, novembro 13, 2004

Introspecção coletiva

'O mundo vive a noite
Todo mundo espera tudo da noite
Nela tudo pode...
O mundo vive a noite
E a fera ruge...
Todo mundo espera tudo da noite
Todo mundo foge
(é da solidão)'

Guilherme Arantes

Ultimamente são raras as vezes que posso ouvir certas músicas de que gosto muito na companhia dos outros. Ocorre que as pessoas ao meu redor julgam tais músicas ?tristes?, ou introspectivas demais, e normalmente não adequadas ao momento. E esses momentos são aqueles em que estamos, eu e essas pessoas, em alguma celebração coletiva ? quer seja uma festa de aniversário, uma reunião informal ou churrasco com piscina.
E ai que me sobram os momentos solitários para ouvir música introspectiva e, pela lógica, aprendo que devo considerar coletivas as obras mais ?leves?, ?pra cima?, ?alto astral?.
Pergunto-me se não poderia eu propor aos que me cercam um momento de introspecção coletiva, onde as músicas progressivas e tristes pudessem ser sentidas por todos os presentes. E daí que sintamos uma ?tristezazinha? de cinco ou cinqüenta minutos de vez em quando? Porque será que os entretenimentos coletivos têm de ser sempre felizes e falantes? Não poderíamos nos entreter analisando as dores da alma dos autores que compõe musicas introspectivas? O risco óbvio, a meu ver, seria encontrarmos nossa própria tristeza refletida, num jogo de espelhos enriquecedor do ponto de vista do auto-conhecimento, porém pouco praticado. Pouco praticado porque talvez não seja muito propagado como um valor. Afinal, nossa sociedade propaga felicidades coletivas e dramas introspectivos como padrões de comportamento muito arraigados. Nenhuma cerveja que se preza propaga a ?fossa? como o momento ideal de se encher a cara. No máximo, você pode ?refrescar seu pensamento? com vários copos da ?loira? dentro de um bar cercado de gente necessariamente jovem e sorridente. Do mesmo modo, nenhum brinquedo infantil é vendido como um meio de crianças satisfazerem suas necessidades diárias de gasto energético e de ansiedade, provocados em grande parte por um modelo de vida focado na atividade intensa (inglês, balé, capoeira, judô, natação, computação, aulas extras... E a escola), no açúcar, na cafeína dos refrigerantes e no chocolate, além, é claro, do consumo inconsciente. Eles são vendidos como meras alternativas ao vazio: ?você não pode ficar fora desta?.
Vivemos sempre nos extremos: do utilitarismo das coisas e das horas ao entretenimento fugaz. Ainda utilizando crianças como exemplo, parece haver uma ?febre? pela compra de brinquedos ?educativos?. A criatividade de uma criança, que é o principal resultado da abstração chamada ?brincar?, não necessita de bugigangas especiais. Sim, existem brinquedos inteligentes, mas dê a uma criança tocos de madeira e ela monta uma cidade! Os brinquedos educativos, ao lado do excesso de atividades, são vendidos para os papais e para mamães, que tentam desesperadamente agregar ?diferencial competitivo? aos seus filhos-mercadoria, na esperança de que estes tenham melhores chances em seus futuros incertos. O resultado? Crianças eternamente insatisfeitas consigo e com o mundo. E o que fazem elas com suas insatisfações? Criam compulsões, talvez. Por trabalho, consumo, sexo, comida, drogas, pelo entretenimento - feliz - a qualquer custo.

?O mundo vive a noite
Todo mundo espera tudo da noite
Nela tudo pode...
O mundo vive a noite
E a fera ruge...
Todo mundo espera tudo da noite
Todo mundo foge
(é da solidão)?

Guilherme Arantes