segunda-feira, junho 16, 2003

Gabor, o falso retilíneo

Os curvilíneos não são necessariamente pessoas tristes, mas não há dúvida de que são mais felizes que os falsos retilíneos. Gabor é um deles.

Até pouco tempo, era um poço de curvilineidade, para desespero da sua família tradicional húngara.

Entrou em três faculdades de carreiras diferentes, e desistiu de todas antes de se formar. Fez dezenas de terapias, ortodoxas e heterodoxas, mas preferia não recomendar nenhuma. Só se apaixonava por meninas fora da colônia, e chegou a defender abertamente a causa palestina. Por alguns anos tornou-se vegetariano, e trocava as férias em resorts do Nordeste com a família por acampamentos em praias de nudismo do Sul.

Como se dava bem com informática, fez alguns cursos de programação e arranjou um emprego de nível técnico no departamento de processamento de dados de uma firma de contabilidade. Foi morar sozinho aos dezenove anos, num quarto-e-sala na Vila Madalena que comprou com uma herança recebida da avó, livrando-se finalmente de sua super-mãe húngara.

Aquela época foi talvez a mais feliz para Gabor. Apesar de uma certa solidão auto-imposta, sentia que estava livre para "curvar-se" à vontade. Comprou um violão, e passava muito tempo na varanda com vista para a Rua Purpurina dedilhando acordes recém-aprendidos das revistinhas. Entrou para um coral, e teve um relacionamento relâmpago com uma dançarina de flamenco que conheceu lá, de quem lembra sempre.

Viveu assim até trinta e tantos anos. Até que se cansou de andar em círculos, ou melhor, em curvas sinuosas e emaranhadas, que não o estavam levando a lugar nenhum, enquanto seus amigos já iam longe em suas trajetórias retas. Essa frustração parecia fazer piorar sua gagueira, problema de infância que tinha diminuído com o tempo, e que voltara com força.

Então casou-se com uma menina que conheceu no Clube Húngaro, amiga de uma prima sua, filha de um poderoso empresário. Mandou blindar o carro, como era praxe na família da esposa; eles até tinham desconto pela quantidade de encomendas. Aceitou um cargo de gerência na indústria de produtos pneumáticos do pai. É bom porque ele pode voltar mais cedo pra casa, e se dedicar ao seu hobby atual - jogar xadrez pela internet. Comprou um apartamento num condomínio com sala de ginástica e piscina aquecida, que ele não frequenta porque as do Clube Húngaro são melhores. O sala-e-quarto da Vila Madalena está alugado, e rende uns troquinhos por mês. Ele ainda tem o violão, dormindo dentro de uma capa de curvim, num canto da sala entre o home-theater e a piscina de bolinhas do filhinho. A gagueira, pode-se dizer, melhorou. Agora quando ela ameaça atacar, Gabor simplesmente para de falar, até que passe.

Nenhum comentário: