terça-feira, dezembro 28, 2004

Feliz? Ano? Novo?

30000 mortos. Não, 60000 mortos. Até agora.

Meu desejo é que em 2005 tenhamos mais tecnologia. Que seja boa, barata e compreensível ao ponto de qualquer um usar. Desejo que essa tecnologia seja entregue a cada cidadão do mundo junto com seus RGs, CPFs e similares, e que qualquer pessoa no mundo possa e queira, a um clique, de onde quer que ele esteja, disparar um alarme. Desejo que um Australiano ou um Americano que tenha ciência de qualquer espécie de catástrofe iminente, simplesmente possa e queira disparar um spam urgente "a quem possa interesssar", informando o que está por ocorrer. Desejo que as operadoras de celular, telefonia, internet, satélite, sinal de fumaça ou o que quer que seja, que elas assumam um compromisso com o humano, e tornem a divulgação de notícias importantes tão fácil quanto baixar um papel de parede do filme "os incríveis", ou um "hit" idiota qualquer, no meu celular, ou no meu comunicador intergaláctico. Desejo que a venda de felicidade em forma de bugigangas e moda, que é feita à classe média cotidianamente, tenha menos força que a propagação das informações que realmente podem salvar uma ou 60000 vidas. Desejo que todas as centrais de atendimento do mundo voltem no tempo e liguem para todos os governos do mundo, informando que estão chegando os OVNIS e tsunamis. Desejo que sismógrafos sejam tão populares quanto satélites, e que conheçamos mais sobre os perigos ocultos de nosso planeta do que sobre as crateras de Marte ou os Mares de metano das luas de Saturno. E que os jornalistas do mundo todo utilizem sua velocidade para evitar a dor ao invés de anunciá-la como furo de reportagem e troféu imprensa. Desejo que as bombas que chovem diariamente no que um dia foi o Iraque sejam menos utilizadas, menos fabricadas, menos vendidas, menos explosivas. Desejo que todas as armas sejam desmontadas e transformadas em lanchas estrategicamente colocadas à disposição dos moradores e turistas da Indonésia, Somália e Índia. Desejo que a Bolsa de Valores seja roubada e vendida para um desmanche, e que o Banco Mundial, a ONU e o FMI sejam invadidos por sem-terras, sem-tetos e pela maioria avassaladora de marginais que se escondem nos becos dos centros das cidades pedindo vida.

Desejo não ver o choro de desespero. Desejo não ouvir e nem sentir mais nada até que haja um bom motivo para isso.
Desejo que todo o dinheiro do mundo não compre uma flor. Desejo que o sal seja novamente moeda, e que a luz do dia não tenha preço.

Babel

PS: Quem?

sábado, novembro 13, 2004

Introspecção coletiva

'O mundo vive a noite
Todo mundo espera tudo da noite
Nela tudo pode...
O mundo vive a noite
E a fera ruge...
Todo mundo espera tudo da noite
Todo mundo foge
(é da solidão)'

Guilherme Arantes

Ultimamente são raras as vezes que posso ouvir certas músicas de que gosto muito na companhia dos outros. Ocorre que as pessoas ao meu redor julgam tais músicas ?tristes?, ou introspectivas demais, e normalmente não adequadas ao momento. E esses momentos são aqueles em que estamos, eu e essas pessoas, em alguma celebração coletiva ? quer seja uma festa de aniversário, uma reunião informal ou churrasco com piscina.
E ai que me sobram os momentos solitários para ouvir música introspectiva e, pela lógica, aprendo que devo considerar coletivas as obras mais ?leves?, ?pra cima?, ?alto astral?.
Pergunto-me se não poderia eu propor aos que me cercam um momento de introspecção coletiva, onde as músicas progressivas e tristes pudessem ser sentidas por todos os presentes. E daí que sintamos uma ?tristezazinha? de cinco ou cinqüenta minutos de vez em quando? Porque será que os entretenimentos coletivos têm de ser sempre felizes e falantes? Não poderíamos nos entreter analisando as dores da alma dos autores que compõe musicas introspectivas? O risco óbvio, a meu ver, seria encontrarmos nossa própria tristeza refletida, num jogo de espelhos enriquecedor do ponto de vista do auto-conhecimento, porém pouco praticado. Pouco praticado porque talvez não seja muito propagado como um valor. Afinal, nossa sociedade propaga felicidades coletivas e dramas introspectivos como padrões de comportamento muito arraigados. Nenhuma cerveja que se preza propaga a ?fossa? como o momento ideal de se encher a cara. No máximo, você pode ?refrescar seu pensamento? com vários copos da ?loira? dentro de um bar cercado de gente necessariamente jovem e sorridente. Do mesmo modo, nenhum brinquedo infantil é vendido como um meio de crianças satisfazerem suas necessidades diárias de gasto energético e de ansiedade, provocados em grande parte por um modelo de vida focado na atividade intensa (inglês, balé, capoeira, judô, natação, computação, aulas extras... E a escola), no açúcar, na cafeína dos refrigerantes e no chocolate, além, é claro, do consumo inconsciente. Eles são vendidos como meras alternativas ao vazio: ?você não pode ficar fora desta?.
Vivemos sempre nos extremos: do utilitarismo das coisas e das horas ao entretenimento fugaz. Ainda utilizando crianças como exemplo, parece haver uma ?febre? pela compra de brinquedos ?educativos?. A criatividade de uma criança, que é o principal resultado da abstração chamada ?brincar?, não necessita de bugigangas especiais. Sim, existem brinquedos inteligentes, mas dê a uma criança tocos de madeira e ela monta uma cidade! Os brinquedos educativos, ao lado do excesso de atividades, são vendidos para os papais e para mamães, que tentam desesperadamente agregar ?diferencial competitivo? aos seus filhos-mercadoria, na esperança de que estes tenham melhores chances em seus futuros incertos. O resultado? Crianças eternamente insatisfeitas consigo e com o mundo. E o que fazem elas com suas insatisfações? Criam compulsões, talvez. Por trabalho, consumo, sexo, comida, drogas, pelo entretenimento - feliz - a qualquer custo.

?O mundo vive a noite
Todo mundo espera tudo da noite
Nela tudo pode...
O mundo vive a noite
E a fera ruge...
Todo mundo espera tudo da noite
Todo mundo foge
(é da solidão)?

Guilherme Arantes

segunda-feira, setembro 13, 2004

Mais Ar

O Ar que sobra ao redor me falta. Pulso aumenta. O Ar que sobra ao redor não entra em meus pulmões. Atormenta. O Ar que sobra ao redor é seco. O Ar que sobra ao redor é sujo. Chuva ameaçadora não cai, só ameaça. O Ar que sobra ao redor é quente. O Ar que sobra me rodeia e me ergue e me derruba, mas não entra. O Ar que sobra ao redor é o mesmo ar que sobra ao redor de todas as coisas vivas e mortas do planeta; O Ar que nos rodeia é a água dos animais condenados a rastejar no fundo deste oceano seco, sem lodo nem areia, somente cimento. E é o mesmo ar que ergue aviões e pássaros, estes sim agraciados com o dom de poder traçar um ponto entre "A" e "B" e sumir no horizonte, buscando clima mais agradável do que o nosso. Somos Caracóis, deixamos traços de nossa pobre condição por onde passamos. Traços etéreos, que o Ar seco, quente e sujo se encarrega de fazer desaparecer.

quinta-feira, julho 29, 2004

Avatar

Tremedeira. Fecho a janela, me cubro, mas continuo a sentir calafrios. Sim, é ela, a gripe. Sozinho em casa, com filha de férias na casa da tia e mulher em congresso de estatística, penso nas 107 pessoas ligadas a mim no tal do Orkut, e imagino pra quem pedir ajuda. Resolvo não ligar pra nenhum amigo. Também não ligo pra ninguém da minha família, simplesmente não comunico ninguém de meu estado lastimável. Afinal, gripe é gripe, quando o vírus completar seu ciclo de vida (ou o ciclo de vida da doença), babau, foi embora, e, além disso, macho que é macho não precisa de canja de galinha da vovó. Nem da ajuda de nada nem de ninguém nem de coisa alguma...Por que eu precisaria? Afinal, a ciência já desvendou boa parte do mistério da gripe: Descongestionante, antitérmico e analgésico, mais um bom chá de alguma receita caseira (com alho, mel, limão e variações...) e cama.

De repente, me cai a ficha: 107 figuras ligadas a mim? Não, no momento da minha tremedeira não havia ninguém ligado a mim. As 107 pessoas estavam talvez ligadas ao meu "Avatar".

Pelo dicionário Houaiss, avatar significa: "1. Rubrica: religião. Na crença hinduísta, descida de um ser divino à terra, em forma materializada [Particularmente cultuados pelos hindus são Krishna e Rama, avatares do deus Vixnu; os avatares podem assumir a forma humana ou a de um animal.] 2. Processo metamórfico; transformação, mutação."

Ou seja, o avatar, pelo jargão dos portais, significa a representação iconográfica da personalidade do visitante. Ou aquela figurinha que representa você no orkut ou uma personagem de videogame que você "encarna" e anima.

E a conveniência de se ter um "Avatar" é algo tão maravilhoso quanto sombrio. Afinal, quem é aquele que foi descrito no orkut e que atende pelo meu nome? Será que é a mesma pessoa que se julga "macho" o suficiente para não precisar de ninguém pra enfrentar uma doença? Ou será que eu conferi ao meu avatar a fabulosa capacidade / necessidade de precisar de todas as pessoas da minha vida, justamente para me isentar de outras responsabilidades perante mim e aos meus amigos? Recentemente, mencionei diversas vezes opinião favorável ao orkut, dizendo que quem define o uso da ferramenta é o homem... Será que estou fazendo bom uso dessa ou de outras ferramentas?

Um avatar é uma face, é a face que se deseja disseminar. Se o ser humano era cindido entre Ser e Ter, e definido com um Parecer, hoje ele começa a classificar o que é e o que parece quando escolhe ser alguém... Ou seja, entre o Ser e o Ter, existe o Parecer. E o desejo hoje é parecer com quem quisermos, a hora que quisermos, vestindo avatares como quem troca de cuecas. Não resolve o problema existencial humano, mas afinal o que resolve?
 Uma última constatação acerca das 107 "pessoas": Não são pessoas, são outros avatares. Outras vontades de poder conectadas à minha vontade de poder. De repente, vazio. E vontade de tomar um canjinha de vó.

Trabalho - Jovens: uma questão de acesso

Trabalho - Jovens: uma questão de acesso

Por Adalberto Wodianer Marcondes

A sociedade deve encontrar maneiras de permitir o acesso dos jovens ao mercado de trabalho. No entanto, nos últimos anos os mecanismos tradicionais de acesso estão sendo sistematicamente fechados ou por evolução tecnológica, ou por falta de visão dos gestores sobre a responsabilidade das empresas em relação ao problema.
Um dos mais tradicionais portais de acesso dos jovens às empresas sempre foi o cargo de office boy. Existem muitas histórias de pessoas que entraram em uma empresa como boys e chagaram a diretores. São histórias de sucesso da construção de relacionamentos e de vocações profissionais a partir de um acesso simples às empresas. O office boy (do inglês garoto do escritório) era um cargo com direitos e deveres dentro das empresas. Tinha como principal tarefa fazer os pequenos serviços e os serviços externos, como levar e trazer, ir a bancos, fazer pequenas compras, etc.
Estas tarefas davam ao jovem ocupante do cargo a oportunidade de relacionamento dentro da empresa, com outros colegas de trabalho mais qualificados, com as secretárias e com outras empresas. Em suas jornadas diárias o office boy tinha acesso a outras empresas e a outros profissionais que se relacionavam com sua empresa empregadora. Isto dava a ele a oportunidade de ver, ouvir, participar de processos, construir suas aspirações ou desejos profissionais baseado em uma convivência diária e rica em oportunidades.
Contudo, as empresas estão fechando as portas a este profissional. Agora não contrata-se mais office boy. Chama-se o moto boy. Um profissional sem futuro, sem relacionamentos, que chega até o portão da empresa com sua motocicleta sem manutenção, retira ou entrega sem ver rostos, sem conhecer pessoas. Trafega pelas ruas desrespeitado pela sociedade motorizada, violentado em suas aspirações e sem construir as bases de seu futuro.
A sociedade está destruindo as rampas de acesso dos jovens ao mercado de trabalho e oferecendo em contrapartida uma típica "solução de mercado". Uma solução que privilegia a velocidade da entrega, a eficiência do processo, sem juízo de valor sobre o que estamos fazendo com os jovens que não construirão suas carreiras dentro das empresas. Sem juízo de valor sobre a sentença de mutilação ou morte que impomos aos jovens "motoqueiros" pelas ruas das cidades.
Muitos utilizam os serviços de motoboys em seus escritórios e acreditam em sua eficiência e baixo custo. Quando, ao final do expediente, saem às ruas em seus carros, criticam: "estes motoqueiros são uns loucos irresponsáveis". Não há relação de causa e efeito. Não há sensação de responsabilidade. Não há uma reflexão sobre o que nós, como sociedade, fazemos com nossos jovens ao negar-lhes o trabalho.
Tratamos os jovens como consumidores, incutimos os desejos, direcionamos as aspirações, estimulamos o livre arbítrio, mas não lhes damos as ferramentas de acesso ao mundo adulto. Precisamos rever nossos "ritos de passagem". É necessário pensar nas pessoas dentro dos processos e não apenas em sua eficiência ascética. Não há mais vagas para bancários, não há mais vagas para arquivistas, exigimos experiência para qualquer trabalho inexperiente, criamos verdadeiros moedores de carne em nossas ruas e vivemos nos perguntando: o que podemos fazer? É simples, podemos prestar atenção no que fazemos em nosso cotidiano e sermos responsáveis pela sociedade em que vivemos. (Agência Envolverde)

Adalberto Wodianer Marcondes é Jornalista e Diretor da Agência Envolverde, e autorizou a publicação de seu texto.


segunda-feira, julho 19, 2004

Ansiedade Tecnológica

Todos os novos meios de comunicação que se infiltraram nas nossas vidas parecem competir entre si por atenção e dedicação. Uma página de internet, os e-mails,  uma lista, um blog, messengers e orkuts da vida, telefones celulares, pdas, Dvds. Além de disputarem entre si, disputam ainda espaço cerebral com os meios de comunicação tradicionais: Televisão, paga e aberta, jornais, revistas, livros, cinemas... Eu, que sou um declarado neófito, me pego pensando em como essas novidades em traquitanas em geral geram ansiedade...
 
Quem teve a oportunidade de entrar em uma Lan House, deve ter encontrado o seguinte: diversos garotos e garotas, de idades entre nove e 17 anos, sentados cada um no seu micro, jogando um jogo aparentemente independente. De repente, uma agitação toma conta de alguns deles, eles gritam, dando bronca ou parabenizando uns aos outros, para depois o silêncio parcial retornar. Com vinte computadores e uma geladeira abarrotada de coca, monta-se uma Lan House. A velocidade de interação e de operação dos controles é espantosa (Meco, conversamos sobre isso, lembra?). Aprender a operar o jogo é relativamente fácil - acompanhar a molecada já é outra história.
 
Acompanhar o ritmo dos avanços tecnológicos atuais é tarefa hercúlea - se é que a força de Hércules tem algo a ver com a destreza mental necessária... Muitos devem se perguntar o seguinte: "Pra que eu tenho que acompanhar?? To bem aqui...". E não tem mesmo. Mas a sociedade cobra esse acompanhamento de várias formas: Seu telefone tem que diminuir pra você ser moderno, seu carro tem que ser trocado pra você ter status, você tem que aparentar juventude eterna e compra biotecnologias em geral, sua TV tem que ser do tamanho do buraco da estante que você comprou (pois a sua ainda boa e nem tão velha 20 polegadas fica parecendo um aquário de um peixe só no espaço da tal nova estante), o seu micro e seus periféricos tem que ser trocado a cada dois anos, sob o risco da temida obsolescência de tudo o que você levou anos para aprender... 
 
Eu sei que esta é a realidade de muitos, porém não de todos. Mas acho que tanto aqueles que gostam de tecnologia são atualizados, quanto quem não gosta mas é obrigado a conhecer por questões profissionais e sociais, acabamos, em algum momento, sofrendo essa sensação de que a tecnologia está gerando um certo sufocamento... Essa ao menos é minha suspeita. Gosto de pensar que ferramentas são extensões do ser humano desde sempre - uma faca, um computador, um hashi, um cobertor. Acho que orkuts e msns da vida são apenas novas ferramentas, que visam aprimorar a forma de relacionamento/comunicação humana. Não sei se conseguem, mas o fato é que é um jeito novo e diferente de fazer as coisas, e nossos filhos farão as coisas desse jeito, até que algo os impeça. Porém, tenho outra suspeita: Ansiedade tecnológica é só ansiedade... Se vivêssemos uma era altamente intelectualizada, talvez a cultura fosse o motivo de competição. Hoje é a tecnologia... Virtudes e erros podem ser levados para o "cyberspace". Tecnologia só muda algumas formas, o conteúdo continua sendo demasiadamente humano.


terça-feira, junho 15, 2004

Rótulos

Rotular é uma antiga mania humana. Desde os pré-Platônicos. Ora, rotular não é um mal, em si. Raça, religião, sexo, nacionalidade... são rótulos, tanto quanto o são os nomes da taxonomia biológica. Afinal, qualquer exemplar de tubarão é um tubarão, e mais: é um peixe. E nenhuma angiosperma é tubarão, nem mesmo peixe.

Na verdade, mesmo mentes ditas inferiores, como a dos animais não humanos, se utilizam desse processo, embora de maneiras muito triviais: aquilo é um alimento ou não é? aquilo outro é um possível agressor ou não é? Basicamente dicotômico e biológico.

Nós, humanos, ditos superiores, ampliamos o uso para aspectos formais: das cores à estética. A atividade de rotular ajuda o entendimento da realidade e o posicionamento diante dela. Rotular é enquadrar um aspecto qualquer da sua percepção dentro de uma ou mais categorias disponíveis em sua estrutura conceitual. Digo uma ou mais porque há vários critérios: classifico se é um objeto concreto ou abstrato, e se for concreto, posso escolher classificá-lo como uma fruta cítrica ou como um automóvel a álcool. Mas em qualquer dos casos, posso, também e independentemente, classificá-lo como amarelo ou verde.

Ampliamos mais ainda, para os rótulos morais. Há quem diga: "não julgues para não ser julgado" - e quem disse que eu não preciso da validação e do alerta dos meus amigos? Há também quem diga que só Deus pode julgar - pobre daquele que não vê que ele próprio é Deus. Mas não quero começar um discussão espiritual: o aspecto moral já é de grande monta, e nem este era minha intenção... que era apenas a utilidade da rotulagem.

O grande problema começa quando o rótulo começa a ter conotações, como por exemplo, quando um rótulo sob o valor etnia implica, seja para quem o usa ou para que o ouve, a atribuição de outro rótulo, baseado em um valor totalmente independente, como a higiene. Assim, se eu pedir a você para passar este envelope àquele negro sentado na platéia, eu posso estar querendo dizer simplesmente isso, mas você pode pensar "ah, aquele ser talvez humano e digno de nojo" - ou então pode pensar que eu pensei isso e julgar-me: "ah esse cretino acha que negro é diferente de branco". E não é? A cor da pele é, mesmo, diferente. Só isso, nada mais. Se ele for o único negro na multidão e eu quero me referir a ele com precisão, está feito. A maioria dos pretensos moralmente superiores não pensaria algo do tipo se eu pedisse para entregar o envelope à japonesa parada na porta ou ao senhor de cabelos grisalhos no corredor - ah, mas acharia ruim se eu dissesse "o velho". Daí vem o preconceito racial e outros.

A despeito disso, quando não há conotações envolvidas, um rótulo costuma destacar uma verdade, um fato. E isso pode ser um problema ainda maior do que o preconceito, para algumas pessoas! Se uma dondoca se irrita quando a outra lhe diz, discreta e amigavelmente, que sua combinação de batom e blusa é brega, quem poderá prever a reação de um amigo quando o outro lhe diz que está enganado sobre certos fatos da vida?!

Em alguns casos, parece a Monsanto e a Dupont tentando evitar a rotulagem de transgênicos - afinal, o povo já como frango alimentado com hormônios e ração feita de milho transgênico há anos e ninguém se incomodou até agora (ignorando, é claro, o aumento das doenças respiratórias, das más formações hereditárias, da baixa imunidade em geral, da baixa fertilidade dos homens y otras cositas más).

sexta-feira, junho 04, 2004

Máfia pode, Conspiração não

Acredito que todos saibam que existem "Máfias" e "Cartéis". Pegando as definições  pelo Aurélio:

 

Máfia:

S. f.
1. Sociedade secreta, fundada na Itália no séc. XIX para garantir a segurança pública, e posteriormente acusada de participação em numerosos crimes.
2.P. ext. Grupo criminoso bem organizado.

 

Cartel

[Do al. Kartell.]
S. m. Econ.
1. Acordo entre empresas independentes para atuação coordenada, esp. no sentido de restringir a concorrência e elevar preços. [Cf. coalizão (3). Pl.: cartéis.]

 É interessante notar que existem verbetes no dicionário que definem grupos que conspiram em benefício próprio, no entanto, existe muita resistência em se aceitar teorias baseadas no fato de que existem pessoas que conspiram em prol de alguma causa. Vamos ao Aurélio novamente:

Conspiração

[Do lat. conspiratione.]
S. f.
1. Ato ou efeito de conspirar; maquinação, trama.
2. Conluio secreto. [Sin. (nas acepç. 1 e 2): conspirata.]

 

Admitimos que empresas conspirem para elevar preços, que criminosos conspirem para vender drogas e lavar dinheiro, admitimos "máfias" que nascem em sindicatos e no governo - mas quando alguém defende a idéia de que os interesses desses grupos possam criar estratégias de convencimento em massa do público, dizemos que esse alguém acredita em "teorias da conspiração"...

 

O senso comum de que "teorias da conspiração" = "mentiras" foi tão fortemente difundido, que hoje é impossível alguém honestamente duvidar dos "fatos históricos" sem ser chamado de louco. Engraçado que a arqueologia pode revisitar a si própria o tempo todo, sempre descobrindo um "elo perdido" mais antigo, uma cidadela mais evoluída do que se imaginava possível para a época... Engraçado que hoje se sabe (documentalmente) que os EUA, um dos principais alvos dessas "Teorias da Conspiração", criaram as ditaduras latino-americanas das décadas de 60-70 e que a CIA age mundialmente defendendo os interesses americanos... Engraçado que um site como o http://www.deolhonamidia.org.br/  pode ser criado para defesa dos interesses de Israel na mídia mundial, um verdadeiro censor que verifica e define termos e intenções - e nós (eu e alguns, não me refiro a todos os briocos, por favor) não podemos cogitar a hipótese de alguma verdade dentro das chamadas "teorias da conspiração". 

 

O mais curioso é que sempre que nos referimos ao "Senso Comum" queremos dizer  “pessoas com pouca instrução influenciada pela mídia"...  Porém, todos estamos sujeitos.

E isso é "fato", e não mera "teoria".  

quarta-feira, junho 02, 2004

Poder

Desafios intelectuais são coisas que me agradam muito. Mas quantos desses desafios nascem para melhorar a vida do homem, e quantos não são criados apenas pela auras de poder em torno de pessoas? Discuti muito com meu pai o poder do poder. Ele dizia, quando morávamos juntos, que as pessoas poderosas se cercavam de outros, e que o interesse era a origem de todas as amizades. Eu, adolescente, questionava e discordava veementemente. Porém, não são os poderes que nos movem? Não são pessoas poderosas que se cercam de pessoas interessadas em poder?

 

Não falo somente do poder "dinheiro", ou "fama". Poder tem a ver com a moeda em questão, tem a ver com influência e trânsito. Um professor tem conhecimento da matéria específica que leciona, mas tem também vivência acadêmica que pode levar um aluno interessado a uma carreira acadêmica promissora ou a um bom emprego. Ele tem poder porque sabe o caminho das pedras. Assim como um guia turístico em uma cidade que você não conhece, que pode te levar a módicos mercados ou caros restaurantes. Poder tem o amigo que é mais político, para o tímido. Poder tem a moça bela, que consegue tudo em troca da promessa inconsciente (muitas vezes não cumprida) de sexo. Poder tem quem renuncia e quem se martiriza em prol de ideais, como padres e santos. Poder têm aqueles que servem sopa uma vez por ano debaixo do viaduto. Poder tem o dono da bola, que só deixa você jogar se ele ditar as regras.

 

Eu vejo pessoas em torno de idéias, fomentando-as e vendendo-as como se fossem raridades, quando qualquer criança sabe se têm conteúdo verdadeiro ou não. E vejo pessoas com o poder de esvaziar as idéias dos outros, menosprezando valores para enaltecimento de suas próprias iniciativas. Perceber isso dói, mas se perceber jogando esse jogo dói mais ainda.

segunda-feira, maio 31, 2004

Naturalmente

Toda morte é natural. O sistema cardíaco falha, o cérebro não recebe mais irrigação, naturalmente o sujeito morre. Como os tiros que ele recebeu, que desviaram o fluxo sanguíneo do corpo para o chão, dentre outros estragos. Natural.
 
Natural como a dor de quem fica. Natural como a revolta de quem, se esquecendo de suas convicções originais, clama por vingança e passa a aprovar a pena de morte. Afinal, uma das lições menos aprendidas do cristianismo foi àquela da "outra face". Quem consegue perdoar um ser "bestializado" ? "Bata de novo que te perdôo outra vez"? Até que ponto somos ou nos sentimos verdadeiramente iguais aos nossos "semelhantes"?
 
Ele se foi, não importanto em que acreditem os crentes, ele se foi. Brutamente, dolorosamente. Mas, como disseram seus amigos, sorrir é o modo de homenageá-lo, pois era alguém que sempre fazia rir.
 
 

quarta-feira, maio 26, 2004

O Português e o Sírio

No caminho do metrô pra casa tem uma loja de material para construção, na verdade uma loja que vende de tudo, menos mantimentos. É de um português. Não importa a hora do dia que você passe por lá, o homem está assistindo ao noticiário de uma tv paga portuguesa cujo nome não me lembro. Fatalmente, quando olho pro cara lembro-me do meu pai.

Seu Hanna é um imigrante Sírio de 66 anos, que veio ao Brasil com uns 20 e poucos anos, por motívos políticos. Nunca quis ficar aqui. Sempre disse que nosso destino era voltar para a Síria. Com o tempo, e após conhecer a Síria, percebi que nunca iria morar lá, apesar de ter gostado muito, pois sou brasileiro e quero viver aqui. Percebi que meu pai dificilmente conseguirá morar lá também. Ele deixou de ser Sírio, porém nunca foi completamente Brasileiro, tanto que seu documento de identificação é o "modelo 19", o rg dos estrangeiros. Quando ele vai pra Síria, fala bem do Brasil - quando volta - e sempre volta - fala bem da Síria.

Vendo o portuga sozinho naquela loja ouvindo os sons de sua mente refletidos na voz do locutor esportivo, senti um aperto. Senti a solidão de quem não está inteiro.
Ao viver cindido, Seu Hanna criou algo em mim. Ao me ver dividido, presenciei minhas memórias escorrerem pela cisão.

Babel

quinta-feira, maio 20, 2004

Egoísmo e Individualidade

Somos feitos de percepções. Nada exatamente "É", tudo se parece. A velha história da cor: o que é vermelho para mim, pode ser o verde para o outro.

 

Então, liberdade acaba sendo um conceito absurdamente relativo. A minha liberdade acaba quando esbarra na do outro, etc. Nesta era de múltiplas definições, onde tudo foi relativizado e se usa muito mais o "e" do que o "ou" (recombinação de conceitos a todo o momento,  especialidades multidisciplinares, ao invés de integrarmos uma "classe social", integramos um "cluster”   - não estamos mais inseridos apenas dentro das classe A, B ou C, mas somos de tal sexo, em tal faixa de renda, com tais preferências, tais gostos e tais atitudes - etc.), me pergunto se alguém realmente sabe lidar com a liberdade.

 

Foi "fácil" definir liberdade em um mundo maniqueísta como o da década de 60-70, quando "mocinhos" e "bandidos" eram teoricamente óbvios. Tudo o que não era de um lado, era de outro. Hoje somos múltiplos, e doutrinados, ao menos aqui no ocidente, a supervalorizarmos nossa postura individual. E essa postura individual cria valores sem que ninguém faça uma "triagem" - Não existe um elemento que "garanta" o entendimento que nós teremos dos conceitos mais óbvios... Na verdade nunca existiu, mas igreja e estado fizeram em parte esse papel até um certo momento da história.

 

Falando de novo em "valor universal", parece uma grande besteira supor que dois indivíduos cheguem às mesmas conclusões sobre mais do que 50% dos temas que discutirem... E como a democracia é feita de  50% mais um, "justiça" não parece ser um conceito bem trabalhado no ambiente democrático. As fantasias provocadas pelo desejo de incorporação de símbolos de poder (tome Jack Daniels e os leões se renderão à sua segurança / dirija um Stillo e possua todas as mulheres/ tenha um celular e seja popular / Seja você também uma Darlene, uma loira do Tcham ou uma BBB4...) talvez possam ser traduzidas, em última instância, em "fantasias de liberdade", uma vez que liberdade é poder de ação (voar, sonhar), é independência (quem já não sonhou em se "livrar" do chefe e ser um "empreendedor"?), é a manifestação perfeita do ego ocidental, que migrou o rito coletivo para a esfera individual, dificultando o compartilhamento e provocando mais intolerância. Quem já viu "Sex and the City" deve ter percebido o quanto a "liberdade" nova-iorquina é mostrada de forma bairrista naquele seriado. Manhattam é o mundo, o único mundo da maioria das personagens, e seus rituais individuais, como pedir comida chinesa no mesmo velho restaurante e considerar qualquer coisa que não pertença ao universo deles (ou seja,  que não comprem sapatos de 300-1000 dólares e que não freqüentem restaurantes e bares onde as "hostesses”  ESCOLHEM quem entra) como "Freaky" ou "Wired"...

 

Com esse pano de fundo, manter relacionamentos nos dias de hoje é criar obras de arte... É pena que nem sempre preservemos nossos acervos. Quem assistiu "The Commitments", viu um grupo musical com potencial para "Beatles" discutir questões pessoais e brigar até acabar - no dia em que eles teriam uma reunião com um olheiro de uma gravadora, todos brigaram com todos...Pergunto-me se não seria desperdício de potencial "humano" o modo como usamos nossa liberdade para justificar atos egoístas, me incluindo nesta ação.

 

terça-feira, maio 18, 2004

Mudanças II

Caros,

Por conta da burocracia do Yahoo, e da inoperância continuada do Coollist, mudamos de novo. A antiga lista "Brioco", passou a ser hospedada pelo www.grupos.com.br. Esta ferramenta é bastante simples de operar e possui diversas funcionalidades interessantes, como acervo de mensagens/webmail, murais, métodos de divulgação e outras traquitanas quetais.

Aproveitamos a mudança também para adequar o nome da lista ao do Blog: Coceira_no_brioco@grupos.com.br é nosso novo nome. Muito mais que simples detalhe, a mudança também significa que não basta apenas TER brioco, é preciso que ele COCE de vez em quando...

Também gostaria de enfatizar a proposta de mudança no slogan (que não foi questionada, mas também não foi ovacionada...), de "Insensatez Humana - fonte inesgotável de discussões.", para "Humanamente é possível". Significa dizer que sem a premissa humanizante, tudo se torna ´coisa´, algo antônimo de ´humano´. Que discutamos as incoerências humanas à luz das possíveis soluções.

Que a insensatez seja, sim, um combustível, mas que este se esgote, e que colaboremos para tanto.

domingo, março 07, 2004

Mudanças

O site de gerenciamento de grupos que usávamos, coollist.com, parece ter deixado de se sensibilizar com nossas questões. Então criamos um novo no Yahoo. Que é um pouco mais burocrático, por ter mais recursos: você precisa ter - ou criar - uma YahooID. Não tenho certeza, mas acho que existe uma opção diet em que isso não é necessário, abdicando-se dos tais recursos (acesso ao site do grupo no yahoo, fotos, arquivos do passado, lista de associados etc) e restringindo-se apenas a receber e enviar mensagens por email.

Só para lembrar, a atividade aqui no blog depende de outro cadastramento, no blogger.com. Quando o criamos, adicionamos apenas os briocos que haviam se manifestado nos últimos tempos, pois não tínhamos acesso à lista completa. Então, se alguém quiser escrever aqui também, basta solicitar, por email à lista (a nova, claro).

quarta-feira, fevereiro 18, 2004

Preconceito, status quo e saúde pública

Um dos editoriais do Estado de São Paulo de hoje (restrito, na net, só para assinantes) critica a sanção da prefeita Marta ao projeto que institui a medicina chamada de alternativa nas escolas primárias do município.

É claro que o editorialista, em toda sua tacanhez reacionária simplesmente imagina que o projeto preveja que as crianças da rede municipal passem a ser tratadas, por quaisquer problemas, com banhos de luz colorida e aromas diversos. E, facilmente, nessa base, convence o leitorado médio daquele jornal, também reacionário ou, no mínimo, preconceituoso - veja bem, o leitor médio daquele jornal, não vá vestir a carapuça, você que além dele, lê o Coceira no Brioco.

Claro que pode acabar sendo verdade, dado o grande volume de pilantras aproveitadores da credulidade geral do povo, especialmente característica entre os mais pobres. E mais ainda pela facilidade que é burlar qualquer controle sobre pessoas num sistema tão grande quanto o educacional e o de saúde de uma cidade como São Paulo.

Um viés presente no artigo é o uso que o autor faz do termo "alternativa", aplicado à medicina. Alternativo quer dizer simplesmente "outro", "diferente", não leva conotação alguma de melhor ou pior, em princípio.
Assim é com as rotas de fuga do tráfego, por exemplo. Mas, ainda ontem, numa discussão sobre a televisão pública (Cultura, TVE e outras tantas), um dos debatedores levantou este aspecto: alternativa, aqui, leva a conotação de desvinculado dos poderes dominantes já estabelecidos - no caso da TV, os grandes grupos e a impresa oficial. E daí torna-e necessário, é claro, definir quais os caminhos dessa televisão alternativa, entre tantas alternativas (aqui no sentido neutro) possíveis.

No caso da medicina cabe a mesma distinção! Medicina alternativa é o conjunto de todas as formas de diagnóstico e tratamento conhecidos. E uma destas, no mínimo, é reconhecida pelas entidades que zelam pelo bom nome da medicina no país - a homeopatia. E não sei a quantas anda a regularização da acupuntura, mas já há algum movimento nesse sentido. E existem outras, que, se ainda não são conhecidas e reconhecidas por aqui, mostram-se totalmente operantes, como a ayurvédica, que é um conjunto ancestral de conhecimentos sobre saúde na Índia e região - vale dizer que, lá, ela é utilizada pela elite, mais do que pelo povo, que tem más condições nuutricionais e sanitárias, dois dos pilares dessa cultura médica.

Outro ponto a se considerar, ainda, sobre o ponto de vista do editorial é que ele pressupõe que a medicina é passiva, como a justiça: é acionada quando há uma causa ativa - doença e proceesso instaurados, num e noutro caso. Mas a justiça não é a instância maior do processo social de lei e ordem - ela coopera, em igualdade de importância, na manutenção destas lei e ordem, com a educação, o policiamento, a prevenção do delito, a condição de qualidade de vida, entrer outros. E tanto menos acionada é quanto mais eficazes forem estes últimos

Assim, também, temos que considerar a manutenção da saúde. Se a criança não adoeçe não precisa de remédio! Óbvio, não? E quantas maneiras há de se cuidar da saúde?! A nutrição - que hoje nem faz parte do excelentíssimo quadro de especialidades médicas da USP, e provavelmente de nenhuma faculdade brasileira de medicina; a higiene pessoal; a postura, a respiração, a consciência corporal e outros aspectos da educação física, atualmente desprezados em nome do esporte - também importante, claro, mas que tem, atualmente, uma ênfase muito maior na competição do que na cooperação e na auto-superação. Enfim, acho que daria para estender bastante essa lista e vou poupá-los disso, por enquanto.

Mas apenas porque quero destacar outro ponto menos óbvio: o desinteresse das grandes corporações da área farmacêutica, outro pilar de poder no atual mundo globalizado, nessa possível, plausível e democrática manutenção da saúde, tirando-lhe o grande mercado da doença. Povo saudável compra menos remédio. No mesmo barco pode-se colocar as empresas de planos de saúde, obviamente.

Enfim, um único editorial preconceituoso me fez descarregar uma série de assuntos que eu gostaria de abordar com mais profundidade. Tudo bem. Volto depois. E conclamo outros Briocos a se coçarem aqui.

segunda-feira, fevereiro 16, 2004

Sem Saída

Não existe possibilidade de fuga. Nenhum devaneio, nenhum riso incontrolável, somente a sobriedade como droga. Somente a lucidez como parceira, e que parceira voraz! Nada da reconfortante sensação de estar na mesma sintonia. Sintonia exclusiva e redundante, uma onda de rádio única, irradiando solitária, ondas de um cérebro desnudo, ou por demais vestido. Ondas que parecem não encontrar espaço no dial, e que retornam ao emissor, transformando este num molestado e único ouvinte de si. Desliguem essa máquina de realidade real (e não virtual)! Devolvam a ele o direito de esquecer de fatos e de mentir pra si, fingindo-se satisfeito.

Fingindo-se satisfeito. Fingindo saciedade impossível, inatingível. A agonia de ser humano é querer mais sempre. E o que ameniza isso? Pílulas mágicas, beberagens milenares, vapores sórdidos, pós encantados, e há quem diga que alguns monges do Tibet, após muito pisar em brasas e deitar em pregos, hoje conseguem sublimar seu lado humano... e há quem diga que repetir muitas vezes as mesmas orações traga uma sensação de proximidade de Deus tal que diminui todo o resto - e coloca o orador do lado dos "bons", "esclarecidos" ou "crentes", em detrimento dos que "ainda" não chegaram lá ("Se você estiver pronto, uma força maior o levará à Pró-Vida"); E há quem acredite em um pouco de cada coisa, e estes são maioria, é o que chamam de "sincretismo". É há os que crêem na desesperança, pois são céticos e acreditam no que vêem, e desesperança é fácil de ver e de encontrar.

Todos buscam o "re ligare" - todos querem que algo antes "ligado" e agora separado, que formem novamente o todo de antes. E formar o Todo, é tudo, é voltar a Deus, é voltar ao útero. É aquele objetivo obsessivo do androide do filme "A.I.", a angústia constante do ser programado para amar.

Sustentar o Olhar

A Psicanálise defende o divã como forma de minimizar a inibição entre analista e analisando. Trata-se de uma tentativa de redução da necessidade que o paciente (e o próprio analista, porque não?) tem em "sustentar o olhar do outro". "Sustentar o olhar" é sustentar um "tipo", uma "persona" ou máscara. Para o analista, derrubar a máscara é primordial.

Fora do divã e fora do consultório, sustentamos todos os olhares. Ou seja, buscamos controlar e/ou lidar com a forma como somos vistos e compreendidos. Tal tarefa exige a criação de ferramental apropriado, algo que garanta a nós mesmos enviar uma resposta "satisfatória" a cada ambiente que frequentamos. Os pais e parentes esperam que o núcleo familiar tenha gerado e criado um "ser viável" no aspecto socio-economico; os filhos esperam que as promessas dos pais sejam cumpridas; amigos esperam que você não mude naquelas características que fizeram você ser categorizado como um amigo, cônjuges esperam que o amor nunca acabe, e que os filhos sejam "seres viáveis", etc.

Creio que o sujeito "onde a expectativa foi depositada" não é algo passivo na geração de expectativas sobre si mesmo. Pelo contrário, acredito que este colabore e muito na criação de boa parte dessas expectativas. O proprio sujeito, ou seu superego, se encarrega de cobrar expectativas, e de criar outras tantas. É provável que não exista cobrador maior do que cada um de nós.

Com base em promessas e esperanças, tecemos nossos valores. Cultivamos valores apropriados à sustentação de máscaras sociais adequadas a cada grupo - alimentamos fantasias de sucesso e fracasso, e vamos estabelecendo relações que nos inserem em grupos sociais, - onde somos aceitos e nos permitimos ficar, "desde que" certas condições sejam satisfeitas. Tais condições formam um contrato, quase sempre subentendido, cujos limites e regras encontram-se em algo chamado por muitos de "cultura", de um povo, de uma família, de uma empresa ou instituição.

Quando me refiro a "máscaras", não o faço necessariamente de modo pejorativo. As máscaras servem de proteção ao ser, como o casco da tartaruga protege seus frágeis órgãos. Mas pode haver mau uso nesta "proteção". Analogamente, os grupos sociais também são necessários, aliás vitais, afinal são neles que desenvolvemos coisas comuns a outros, relacionadas com realidades exteriores à nossa. Em grupos desempenhamos papéis, e desenvolvemos sociabilidade. Mas estes grupos se transformam com o tempo, podendo vir a perder substância ou significado. O uso da máscara em um determinado grupo pode se tornar um ritual vazio. Como é o Natal para muitos. Como conviver em meios cujas pessoas, mesmo que ainda queridas, impeçam a evolução de seus membros - ao invés disso, provocam a certeza da aceitação (te amam como você é) e instigam o temor do "mundo lá fora", impedindo o ser de evoluir. O grupo social vira um conveniente "grupo de segurança", onde a "segurança" torna-se um risco real de infelicidade individual. O indivíduo perde quereres individuais e ignora suas próprias necessidades, para continuar os rituais aceitos / cobrados pelo grupo.

Vejo pessoas que vivem em seus "grupos de segurança", onde as regras de "sustentação do olhar do outro" já são velhas conhecidas. Não há necessidade de esforço grande, erros são perdoados e chances são concedidas sempre, em nome um afeto maior que - espera-se - a tudo tem o dever de resistir. Um contrato firmado com um "grupo de segurança", muitas vezes, compromete a "alma" de um ser: sua própria felicidade e satisfação.

quinta-feira, fevereiro 12, 2004

Distribuição de renda

Essa história de botar limite no número de horas trabalhadas, que andou em voga recentemente - e deriva de elocubrações muito interessantes que já li em J.J.Rousseau (Elogio do Ócio) e ouvi do Domênico di Masi (Roda Viva, há muitos anos) - tem um furo, uma inversão de valores.

Quem precisa trabalhar menos para dar espaço de trabalho a outros não são aqueles que já têm a semana limitada em 40, ou 44 ou 36 horas. E ganham uma merreca por cada uma dessas horas.

Quem precisa de limite é quem ganha muito por hora. Se ganha muito por hora, que trabalhe poucas! Além disso, esse é o sujeito que ocupa os lugares onde a maioria gostaria de estar. Mas é por isso mesmo, não? Ele não quer que outros estejam iguais. E depois reclama que não tem tempo de curtir o filho recém-nascido, e desvia a atenção de médicos - que deviam estar tratando de manter e melhorar a saúde do povão - para tratar de seu estresse, de seu cancêr; e desvia a atenção da força policial - que devia estar atrás de bandido - para vigiar se ele não ultrapassa o limite de velocidade (pra relaxar) com sua super-máquina, e ainda avança o semáforo e atropela o pobre coitado que camela para ir trabalhar, camela ao trabalhar e dromedaria para volta pra casa, de quem ainda querem tirar o direito de trabalhar o quanto as forças lhe permitirem, para ver se consegue dar uma base melhor para o filho. Ou para a extensa lista de filhos.

terça-feira, fevereiro 10, 2004

Enchentes

Por que é que ninguém pensa em trabalhar com a água, com a natureza, ao invés de tentar controlá-la? Não é a natureza, aquela bonitinha e preservada, sem acesso e sem utilidade. É simplesmente observar as forças que resistem ao controle e, quando subjugadas, explodem em outro canto.
Quanto mais canalizamos os córregos, mais rápido a água se esvai, para longe dos reservatórios. Quanto mais construímos, concreto e asfalto, mais contribuimos para que não haja umidade em nosso ar. Quanto mais esgotos, mais dinheiro (no esgoto...) para despoluir o que precisamos consumir...
Enquanto não mudar a forma de pensar, pode ser Marta ou Maluf, dá quase na mesma.